Resumo
Este trabalho revisa relatos documentados de surtos de endoftalmite associados a mutirões de cirurgia de catarata realizados no Brasil entre os anos de 2022 e 2025. Identificamos locais, número de cirurgias, número de casos, agentes etiológicos, desfechos e causas investigadas e discutimos as lições aprendidas para práticas seguras em mutirões oftalmológicos. Observou-se que falhas estruturais e de controle de infecção tornam mutirões vulneráveis a complicações graves, com implicações para políticas públicas, vigilância sanitária e ética médica.
Introdução
A cirurgia de catarata é um dos procedimentos oftalmológicos mais realizados no Brasil, frequentemente ofertada em mutirões para reduzir filas e ampliar o acesso à saúde ocular. Apesar de ser considerada segura em condições ideais, complicações infecciosas como a endoftalmite pós-operatória representam risco significativo. A realização de mutirões, por envolver grande volume de pacientes em curto período e, muitas vezes, estruturas temporárias ou sobrecarregadas, pode aumentar esse risco. Assim, torna-se fundamental revisar e analisar eventos adversos ocorridos em mutirões, a fim de compreender suas causas e prevenir novos surtos.
Métodos
Realizou-se uma revisão narrativa utilizando fontes públicas, incluindo reportagens, documentos de vigilância sanitária, comunicados de conselhos profissionais e literatura. Foram selecionados relatos de surtos de endoftalmite relacionados a mutirões oftalmológicos no Brasil que apresentassem dados sobre número de cirurgias, número de pacientes afetados, agentes etiológicos e desfechos.
Resultados
Entre 2022 e 2025, diversos surtos de endoftalmite relacionados a mutirões de catarata foram identificados em diferentes regiões do país. Em setembro de 2023, no Amapá, no âmbito do Programa Mais Visão, 141 pacientes foram operados e 104 desenvolveram infecção pós-operatória, com identificação de fungos do gênero Fusarium. As consequências foram severas: ao menos setepacientes precisaram de evisceração do globo ocular, enquanto outros apresentaram perda visual irreversível.
Em setembro de 2024, outro surto ocorreu em Parelhas, Rio Grande do Norte, onde 20 cirurgias foram realizadas no primeiro dia do mutirão e 15 desses pacientes desenvolveram endoftalmite. O agente etiológico identificado foi Enterobacter cloacae, sugerindo contaminação por falhas ambientais ou de instrumental. O evento resultou em oito enucleações, diversas vitrectomias e desfechos graves.
Outro episódio significativo ocorreu em Rondônia, em fevereiro de 2022, durante o projeto “Enxergar”. Estima-se que aproximadamente 120 cirurgias eram realizadas por dia, e pelo menos 40 pacientes tiveram infecção ocular pós-operatória. Em 13 desses casos isolou-se Pseudomonas aeruginosa, microrganismo de alta virulência. Investigações apontaram falhas estruturais e de controle de infecção no mutirão.
Além desses surtos específicos, dados compilados pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia indicam que, entre 2022 e 2025, pelo menos 222 pacientes sofreram complicações graves decorrentes de mutirões, dos quais ao menos 45 tiveram perda visual significativa em um ou ambos os olhos. Esses números sugerem tanto a gravidade dos surtos quanto a possível subnotificação nacional. No conjunto, os relatos revelam um padrão de falha sistêmica: quando há inadequação estrutural, falhas de esterilização, manipulação incorreta de soluções e excesso de volume cirúrgico, ocorre um risco elevado de contaminação comum, levando a surtos de alta magnitude.
Discussão
As taxas observadas nos surtos — variando entre 40% e 75% dos pacientes operados — são extremamente maiores que as taxas esperadas em ambientes controlados, onde a ocorrência de endoftalmite pós-operatória é baixa. Isso demonstra falhas graves nos processos de esterilização, antissepsia e manejo de materiais. Os fatores mais frequentemente identificados incluem reprocessamento inadequado de instrumentais, manipulação incorreta de soluções estéreis, sobrecarga de cirurgias, falta de troca de paramentação entre procedimentos e infraestrutura insuficiente. Os surtos também evidenciam falhas na vigilância epidemiológica e na detecção precoce de casos. As implicações éticas são amplas, pois mutirões, quando mal executados, expõem pacientes vulneráveis a riscos desnecessários, contrariando os princípios de beneficência e não maleficência. Do ponto de vista sanitário, os dados reforçam a urgência de regulamentação rigorosa, supervisão ativa e aplicação obrigatória das normas de controle de infecção.
Conclusões e Recomendações
Os surtos analisados demonstram que mutirões de cirurgia de catarata, apesar de seu potencial de ampliar o acesso à saúde ocular, podem resultar em danos graves quando realizados sem rigor técnico e sanitário. Diante do exposto, podemos aprender com esses casos que o óbvio precisa ser dito — e aplicado. Normas básicas de controle de infecção, amplamente conhecidas e universalmente recomendadas, devem ser rigorosamente seguidas. Isso inclui troca de luvas, de capote e a realização adequada de antissepsia cirúrgica das mãos entre cada procedimento, sem exceções; assim como a esterilização correta de todos os instrumentais entre uma cirurgia e outra, garantindo que nenhum material seja reutilizado fora das recomendações técnicas. Além disso, soluções estéreis não devem ser compartilhadas, e ambientes cirúrgicos devem ter condições estruturais equivalentes às de um centro cirúrgico hospitalar.
Os surtos mostram ainda que a celeridade ou o volume não podem se sobrepor à segurança. A vigilância pós-operatória, a busca ativa de casos, a notificação obrigatória de infecções e a auditoria contínua dos processos são pilares indispensáveis. Mutirões só devem ser realizados por equipes treinadas, com materiais adequados, infraestrutura validada e processos monitorados. A prevenção de novos surtos depende da aplicação inegociável dessas medidas básicas — que, embora simples, revelam-se decisivas para a segurança do paciente.